Algumas ideias sobre a violência.

Uma vez perguntaram-nos se os projectos que estamos a desenvolver são violentos.

 

A HISTORY OF VIOLENCE é o exemplo da violência ao serviço de uma grande história dramática.

 

A resposta veio na forma de outra pergunta: “violentos em que sentido?” De facto, a palavra “violência” cobre um espectro bastante amplo que vai do abuso discreto ao genocídio com todas as outras cores pelo meio. Tal como o amor, também a violência aparece sob muitas formas. Na verdade, a violência nos filmes de terror não é muito diferente em termos absolutos daquilo que vemos em outros géneros. Um filme recente do James Bond, por exemplo, possui tantas mortes quanto uma sequela qualquer do SEXTA-FEIRA 13. A grande diferença está no facto de que, no James Bond, a violência é justificada pelo Bem maior que virá quando o protagonista chegar ao fim da sua missão (o que torna tudo mais limpo e reconfortante). Já no caso do HOSTEL, a violência não resulta da luta do protagonista por um Bem maior, mas do facto de que coisas horríveis acontecem com gente inocente. São duas visões do mundo totalmente diferentes.

A violência física que vemos em THE LAST HOUSE ON THE LEFT ou no SAW apenas é a manifestação mais óbvia da perturbação sofrida por aqueles que a praticam e enquanto que todos nós apoiamos o percurso violento de um Jason Bourne ou de um John McClane, dificilmente sentimos o mesmo no caso do Leatherface, do Michael Myers ou de um zombie anónimo: o ónus da prova desloca-se do herói que sobrevive e luta para a vítima que luta para sobreviver.

 

CASINO ROYALE: a violência que justificamos facilmente.

 

Outra resposta para a pergunta feita poderia ser esta: a violência deverá ir até onde a história for e até onde o espectador sentir que deve ir. A década de 90 foi má para o cinema de terror. Porém, foi uma década decisiva. O género finalmente entrou no mainstream e se transformou numa indústria à altura dos outros géneros. Prova disto é que grandes estrelas como Bruce Willis (THE SIXTH SENSE), Harrison Ford (WHAT LIES BENEATH) e Michelle Pfeiffer (WOLF) tomaram interesse pelo género. O problema é que durante os anos 90, os filmes (mesmo apesar das estrelas e dos grandes orçamentos) foram muito desinteressantes. O 11 de Setembro (em 2001) foi um evento que teve impacto em todos os géneros cinematográficos.  E de todos, o impacto mais forte foi no cinema de terror. Mudou o público, sua visão, sua percepção da realidade e (mais importante) a sua relação com a violência.

Neste sentido, filmes como SAW, HOSTEL e HAUTE TENSION jamais seriam possíveis antes de 2001 e é preciso lembrar THE HOUSE OF 1000 CORPSES, rodado no ano 2000, ficou na prateleira até 2003, quando finalmente foi distribuído – com grande sucesso. O filme era o mesmo. O público, não.

Mas como já foi dito antes, a violência vem sob várias formas. Um filme pode conter uma única forma de violência ou várias em simultâneo. Existe a violência física (mais comum e óbvia) que vemos em filmes como THE EVIL DEAD, LA HORDE e FRONTIÈRE(S). Assenta na agressão física e tem como objectivo mais imediato chocar o espectador. E aquilo que choca é a desigualdade do poder. No HOSTEL, os clientes têm todo o poder sobre as vítimas. As vítimas não têm poder algum sobre nada. Tal disparidade revela-se de forma gráfica e explícita no ecrã e, discutivelmente, ela exerce sobre muitos espectadores um fascínio (ou mera curiosidade) semelhante àquele que vemos quando os condutores param para ver um acidente na estrada: trata-se do fascínio que muitos de nós sentimos diante do caos e da desordem quando levadas ao extremo.

 

The Last house on the Left movie poster

THE LAST HOUSE ON THE LEFT: a violência injusta e o prazer da vingança.

 

Existe a violência psicológica (muito pouco compreendida) que podemos encontrar em filmes como THE SILENCE OF THE LAMBS, REPULSION e DEAD CALM. Este tipo de violência é difícil de construir porque exige personagens mais complexas em situações onde a violência física não seja uma opção possível. Ela pode resultar, mais tarde, em violência física, quando as frustrações, angústias ou impossibilidades tornam pouco clara a fronteira entre ambas (THE SHINING) ou quando simplesmente não existe uma saída para um problema (THE MIST). Podemos ter ainda a violência espiritual cujos melhores exemplos são THE EXORCIST, ROSEMARY’S BABY ou THE OMEN onde aquilo que está em jogo é a própria paz de espírito do espectador confrontado com propostas ficcionais que desafiam as suas convicções. Em THE EXORCIST, por exemplo, o Padre Karras é confrontado com uma realidade desconcertante: Deus tem muito pouca intervenção no mundo e o Diabo parece ter todo o poder para fazer aquilo que quiser com o Homem (com ele próprio ou com uma rapariga inocente).

A violência sexual que encontramos em SHIVERS é (em cinema) um desdobramento mais raro da violência física e assenta em ataques sexuais ou, pelo menos, bastante erotizados. Acontece que por meras questões de mercado, este tipo de violência (também por vezes extrema) pertence a outros géneros que melhor podem com a polémica (THE ACCUSED ou IRRÉVERSIBLE). Existem até grandes obras da cinematografia europeia que jogam em vários campos: REPULSION e SALÒ são dois exemplos.

 

The Mist movie poster

THE MIST: a violência psicológica e a falta de uma saída viável.

 

A violência pode ainda ser compreensível (Pamela Voorhees sofria de perturbações mentais severas da mesma forma que os vampiros necessitam de sangue), incompreensível (em NIGHT OF THE LIVING DEAD ou em DAWN OF THE DEAD não se sabe o que faz com que os mortos se levantem), natural (28 DAYS LATER ou ARACHNOPHOBIA) ou sobrenatural (POLTERGEIST ou THE HAUNTING). Aqui é curioso notar que enquanto a violência compreensível (James Bond) ou a natural (DEEP IMPACT ou ARMAGEDDON) estão disseminadas em todos os géneros, a incompreensível e a sobrenatural parecem (na prática) ser mais amigas do cinema de terror.

Mas que ninguém pense que a violência per se é algo que pertence exclusivamente ao domínio do cinema de terror. Outros tipos de violência pertencem quase que exclusivamente a outros géneros. A violência emocional, a violência cultural, as diversas formas de abuso físico, verbal e económico ou ainda o abandono são todas formas de violência existentes (em grandes quantidades) em todos os outros géneros. Deste ponto de vista, obras tão grandes e diversas como SCHINDLER’S LIST, ORDINARY PEOPLE, FAIL-SAFE, CIDADE DE DEUS, NETWORK, CRASH, MAGNOLIA, A CLOCKWORK ORANGE ou CHINATOWN jamais seriam possíveis sem as grandes doses que violência que possuem. A grande diferença está noutro lado.

A violência no cinema de terror é apenas mais um elemento narrativo ao serviço da história que desejamos contar. A diferença é que as nossas histórias chamam a atenção do espectador para um lado da vida que habitualmente os outros géneros não mostram: um lado obscuro, esmagadoramente desigual e imprevisível onde ameaças impensáveis espreitam a cada esquina – como se fôssemos insectos numa floresta repleta de predadores… ou como se o nosso mundo de lei e ordem fossem apenas uma ilusão – e em cada outro houvesse um monstro a observar-nos.

Na vida, há quem adore desportos radicais: atirar-se de uma ponte preso a uma corda, descer um rio agitado num barco minúsculo ou simplesmente escalar uma montanha. A adrenalina não vem sem alguma violência (controlada ou literal). Mas nós que adoramos o cinema de terror, praticamos tudo isto… mas fazemo-lo numa sala de cinema (ou no sofá) diante de um ecrã. A nossa montanha situa-se noutro nível porque o cinema de terror é o desporto radical do espírito.

Viva o cinema de terror!

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One Response to “Algumas ideias sobre a violência.”

  1. Francisco Peres Says:

    Subscrevo este manifesto 😉 Longa Vida ao Cinema de Terror

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